domingo, 11 de novembro de 2012

[Tempo & Mortalha]


Dedicado à amiga B. Monteiro.


O Tempo é a mortalha do Mundo e do Homem.

Tem a palavra mortalha duas díspares accepções que são as seguintes: lençol que envolve os cadáveres e pedaço de papel onde se há de enrolar tabaco para sua posterior consumpção. O prudente philólogo achará fácil approximação entre estes dois significados pois, ao lembrar-se dos muitos damnos que a americana planta causa à saúde humana, não hesitará em affirmar que uma mortalha leva à outra, contendo a primeira a causa e a segunda a consequência, id est a Morte. Porém, é já por mais ínvios accessos que se chega à comprehensão da subtilíssima virtude allegórica que a mortalha encerra, que é a de representar o Tempo. Ora também o Tempo serve para envolver, scilicet o Mundo e o Homem, e tal como há duas distinctas mortalhas, assim também o Tempo servirá para duas cousas: assignalar a mudança, como a mortalha do defuncto, e servir como recipiente que dá forma, como a mortalha do tabaco.

Que o Tempo envolve o Mundo, como a mortalha envolve o defuncto, fàcilmente se comprehende, pois do Mundo o que mais se vê é mudança. Ora a mortalha, n'este caso, representa duas mudanças: uma inútil, que é a de se gastar panno em cousa putrefacienda; outra desditosa, que é de se estar vivo e passar-se a morto. De igual modo no Mundo: faz o Tempo girar as estações e isto inutilmente, pois de anno a anno estamos na mesma; e se alguma mudança há das que não são rotundas, é para differente, mas pior. Estas duas espécies de mudança estão também ellas patentes no Homem, sendo mudança inútil tudo o que faz o Ser desde a contingência do nascimento até ao capítulo da morte, que é para o Homem a segunda, desditosa e derradeira mudança.

Que o Tempo envolve o Mundo e o Homem, como a mortalha envolve o tabaco, bem o entenderá o conhecedor da mais básica Philosophia pois, estando em relação de interdependência a matéria e o tempo, se este último não existisse ficava assim o Mundo e o Homem como tabaco picado espalhado no Caos Primordial. Se tal acontecesse, tal como alguém de tabaco sem mortalhas nada pode fazer, assim ficaria o Creador em grande abhorrimento perante a desabrida condição em que estaria a sua Creação diffusa.

Tendes pois visto os diversos effeitos que tem o Tempo no Mundo e no Homem, que são os que as mortalhas também têm em suas applicações, quod erat demonstrandum.