Dedicado à amiga B. Monteiro.
O Tempo é a mortalha do Mundo
e do Homem.
Tem
a palavra mortalha duas díspares accepções que são as seguintes: lençol que
envolve os cadáveres e pedaço de papel onde se há de enrolar tabaco para sua
posterior consumpção. O prudente philólogo achará fácil approximação entre
estes dois significados pois, ao lembrar-se dos muitos damnos que a americana planta
causa à saúde humana, não hesitará em affirmar que uma mortalha leva à outra,
contendo a primeira a causa e a segunda a consequência, id est a Morte. Porém, é já por mais ínvios accessos que se chega à
comprehensão da subtilíssima virtude allegórica que a mortalha encerra, que é a
de representar o Tempo. Ora também o Tempo serve para envolver, scilicet o Mundo e o Homem, e tal como
há duas distinctas mortalhas, assim também o Tempo servirá para duas cousas:
assignalar a mudança, como a mortalha do defuncto, e servir como recipiente que
dá forma, como a mortalha do tabaco.
Que
o Tempo envolve o Mundo, como a mortalha envolve o defuncto, fàcilmente se
comprehende, pois do Mundo o que mais se vê é mudança. Ora a mortalha, n'este
caso, representa duas mudanças: uma inútil, que é a de se gastar panno em cousa
putrefacienda; outra desditosa, que é de se estar vivo e passar-se a morto. De
igual modo no Mundo: faz o Tempo girar as estações e isto inutilmente, pois de
anno a anno estamos na mesma; e se alguma mudança há das que não são rotundas,
é para differente, mas pior. Estas
duas espécies de mudança estão também ellas patentes no Homem, sendo mudança
inútil tudo o que faz o Ser desde a contingência do nascimento até ao capítulo
da morte, que é para o Homem a segunda, desditosa e derradeira mudança.
Que
o Tempo envolve o Mundo e o Homem, como a mortalha envolve o tabaco, bem o
entenderá o conhecedor da mais básica Philosophia pois, estando em relação de
interdependência a matéria e o tempo, se este último não existisse ficava assim
o Mundo e o Homem como tabaco picado espalhado no Caos Primordial. Se tal
acontecesse, tal como alguém de tabaco sem mortalhas nada pode fazer, assim
ficaria o Creador em grande abhorrimento perante a desabrida condição em que estaria
a sua Creação diffusa.
Tendes
pois visto os diversos effeitos que tem o Tempo no Mundo e no Homem, que são os
que as mortalhas também têm em suas applicações, quod erat demonstrandum.